Quatro Princípios da Liderança de um Conselho de Administração com Propósito

Quatro Princípios da Liderança de um Conselho de Administração com Propósito

Diante da urgência cada vez maior de se lidar com iniquidades sistêmicas, conselhos diretores de organizações sem fins lucrativos devem passar a priorizar o propósito da instituição, mostrar respeito pelo ecossistema no qual operam, comprometer-se com a equidade e reconhecer que o poder deve ser validado pelas pessoas que buscam ajudar. 

Por Anne Wallestad

Foto de Istock/piranka

A crescente conscientização nos Estados Unidos acerca das profundas e sistêmicas iniquidades do país vem provocando reflexões há muito necessárias a respeito das mudanças que precisam ocorrer nas instituições. Diante disso, o Terceiro Setor está fazendo perguntas importantes sobre como progredir. Um exemplo: da maneira como existem atualmente, os conselhos de administração de organizações sem fins lucrativos estão preparados para dirigir as organizações sociais pelas quais são responsáveis?

Alguns veem os conselhos de administração como extremamente imperfeitos para ser parte da solução, mas muitos estão ávidos por fazer deles os órgãos de liderança que precisam ser para promover e acelerar o potencial impacto positivo do Terceiro Setor. Como líder da BoardSource, não surpreende que eu acredite vivamente na importância e potencialidade dos conselhos das organizações sem fins lucrativos. Contudo, a BoardSource também  considera que, da maneira como operam atualmente, os conselhos diretores não se encontram bem estruturados para nos liderar rumo a um futuro mais equitativo como sociedade. Isso fez com que pensássemos a fundo sobre essas razões e o que seria preciso para alterar tal cenário.

Como São os Conselhos Atualmente

Os conselhos diretores são uma estrutura de liderança singular e curiosa. Têm um poder significativo, mas apenas como coletividade, uma vez que nenhum de seus membros pode fazer qualquer coisa de forma independente. Situam-se tanto acima quanto ao largo da estrutura organizacional, desempenhando um papel em que são responsáveis tanto por aqueles de fora quanto pelos de dentro da organização. E, exceção feita a parâmetros básicos de cada estado em torno das diretrizes estruturais, são dotados de uma estrutura flexível regida apenas por seus estatutos, que eles mesmos têm o direito de mudar.

Por todos esses motivos, um conselho pode ser reorganizado de inúmeras maneiras desde que tenha disposição para fazê-lo. Isso é tanto a beleza quanto o desafio da estrutura de um conselho diretivo: apenas um conselho tem poder de mudar a si mesmo, e conselhos podem interpretar e pôr em prática suas próprias expectativas em relação às suas funções e responsabilidades. E com relação às questões mais relevantes, os conselhos são seu próprio mecanismo de responsabilização. A depender de como um conselho é ocupado e autogerido, a estrutura pode funcionar esplendidamente. E pode também  fracassar terrivelmente.

Por conseguinte, conselhos tendem a definir suas responsabilidades mais primordiais, se organizando em torno de sua interpretação acerca do que é mais importante. Por exemplo: quando conselhos de administração se veem primordialmente como órgãos de captação de recursos, é mais comum que sejam ocupados essencialmente com base no acesso à riqueza e a pessoas abastadas. O que ocorre, porém, quando um conselho voltado para a captação de recursos se envolve com um serviço estratégico que exige uma profunda compreensão do trabalho que a organização realiza e da comunidade que busca atender? Ou quando contrata um executivo bem posicionado para conquistar e manter a confiança dos stakeholders da organização? Ou toma decisões organizacionais difíceis que precisam ser consideradas válidas pelas pessoas e comunidades impactadas por seu trabalho? E um conselho diretor que se vê primordialmente como órgão de supervisão legal ou financeiro, mas se encontra mal preparado para lidar com os desafios mais estratégicos enfrentados por tal entidade?

Nesses cenários, sobram duas opções bastante problemáticas para as organizações:

  1. Deixar o conselho de lado em todas as decisões estratégicas importantes, o que coloca a organização extremamente vulnerável diante dos desafios de transição ou de liderança do CEO; ou
  2. Ver as decisões serem tomadas por um conselho de administração mal informado, algo que, em qualquer contexto, é desafiador, mas  principalmente quando se leva em conta o potencial do impacto negativo que pode causar aos membros mais vulneráveis e marginalizados da nossa sociedade.

De acordo com o mais recente Leading with Intent, estudo da BoardSource, pesquisa feita com mais de 800 CEOs e presidentes de conselhos, atualmente os conselhos de administração das organizações sem fins lucrativos estão:

  • Bastante preocupados com a captação de recursos: ao serem perguntados sobre a importância do desempenho do conselho, em 18 diferentes áreas de responsabilidade do conselho, 70% dos executivos avaliaram a captação de recursos como “muito importante” — acima da maior parte das demais categorias de desempenho dos conselhos (incluindo pensamento estratégico, definição da direção estratégica da organização, conhecimento de programas organizacionais e compreensão do contexto no qual a organização atua).
  • Desconectados das comunidades e das pessoas que atendem: metade (49%) de todos os CEOs disse não ter os membros do conselho certos para “estabelecer confiança junto às comunidades atendidas”. Apenas um terço dos conselhos (32%) prioriza “conhecer a comunidade atendida” e uma parcela ainda menor (28%) dá prioridade para “afiliação dentro da comunidade atendida”. Vale ressaltar que essa questão não pressupunha um ranking como base, o que significa que os entrevistados não estavam limitados a apenas uma área de “maior prioridade”, podendo dar prioridade para qualquer um dos critérios listados.
  • Mal informados acerca dos ecossistemas nos quais suas organizações atuam: apenas 25% dos conselhos afirmam que “conhecer o trabalho ou o setor da organização” é prioridade no momento de recrutar membros para o conselho e somente 11% colocam “experiência prévia ou atual em uma organização/missão em uma área similar” como prioridade.
  • Carentes de diversidade racial e étnica: os conselhos não apenas são majoritariamente formados por brancos (78% dos membros são brancos e 19% dos conselhos são exclusivamente compostos por pessoas brancas), mas aqueles conselhos que carecem de diversidade racial/étnica relatam que sua composição racial/étnica influencia negativamente sua capacidade de compreender o ambiente operacional e o trabalho da organização; de atrair e reter talentos tanto no âmbito do conselho como no da empresa; de melhorar sua posição na organização junto a investidores, doadores e o público geral; de entender como atender à comunidade da melhor maneira possível; e de fomentar a confiança e a credibilidade dentro da comunidade atendida.

 

Liderança com Propósito

É preciso ter uma conversa franca sobre qual é o trabalho mais essencial do conselho diretor e de que modo sua composição pode mudar para poder dar suporte a esse trabalho fundamental. É necessário, ainda, oferecer uma nova orientação para a função de liderança do conselho, algo que a BoardSource define como “liderança de conselho com propósito”, uma mentalidade caracterizada por quatro princípios fundamentais, interdependentes e capazes de se consolidar reciprocamente e que definem o modo como o conselho olha para si e para seu trabalho:

  • O propósito vem antes da organização: priorizar o propósito da organização antes de priorizar a própria organização.
  • Respeito pelo ecossistema: admitir que as ações da organização podem influenciar positiva ou negativamente o ecossistema que a circunda, bem como empenhar-se em ser um player que não apenas respeita o ecossistema, mas que também se responsabiliza por ele.
  • Mentalidade equitativa: fazer esforços para promover resultados equitativos, discutir e evitar ações que permitam que as estratégias e o trabalho da organização reforcem inequidades sistêmicas.
  • Voz e poder legitimados: admitir que voz e poder organizacionais devem ser legitimados por aqueles impactados pelo trabalho da organização.

 

O propósito vem antes da organização

Tradicionalmente, entende-se que conselhos diretores  são “dotados de uma missão”, o que significa que são responsáveis por garantir que uma organização trabalhe bem e obtenha progressos em sua causa. Porém, embora ser voltado para uma missão faça parte do cerne da função da organização no tocante a fazer o bem, acredita-se que os conselhos precisam reorientar seu propósito — razão principal da existência de uma organização.

Na BoardSource, encaramos visão, missão e valores como elementos mais estritamente definidos do propósito:

  • Visão: a situação futura almejada.
  • Missão: o papel da organização no trabalho em direção à sua visão.
  • Valores: princípios e crenças que orientam como uma organização concretiza sua missão.
  • Propósito: a razão de ser de uma organização no mundo — uma combinação dos conceitos da missão e dos valores na busca por uma visão.

Essa distinção pode soar semântica, mas, na verdade, é uma mudança profunda e substancial. A estrutura tradicional de um conselho prioriza a organização e sua missão, e neste desenho a organização fica no centro de seu próprio universo e esfera de influência. Aplicar o conceito “o propósito vem antes da organização” significa se afastar da organização como centro gravitacional, e voltar-se para seu propósito e para a questão de como seus recursos podem ser mais bem administrados em prol desse propósito.

Quando o propósito de uma organização pode ser cumprido por algo que, direta ou indiretamente, não atende à organização — ou até trabalhe contra a mesma —, a distinção entre um papel mais tradicional do conselho e um conselho com um propósito torna-se bastante evidente:

  • A estrutura tradicional da função de um conselho: o conselho atua a serviço de uma organização que busca trazer progressos para o bem da sociedade. O conselho é primordialmente responsável por manter e apoiar a organização, bem como sua capacidade de existir a serviço de sua missão.
  • Liderança de conselho com propósito: o conselho atua a serviço do propósito da organização, sendo primordialmente responsável por administrar suas funções organizacionais e maximizar o impacto positivo a serviço daquele propósito ou causa principal.

O dever de lealdade é um dos três deveres jurídicos essenciais de um conselho diretor, uma perspectiva legal voltada para evitar agir em causa própria e o conflito de interesses. Na prática, porém, o dever de lealdade é muitas vezes interpretado como a responsabilidade de pensar apenas na organização ao tomar decisões administrativas. Essa interpretação, desnecessariamente, faz com que os membros do conselho vejam a lealdade à organização como uma entidade corporativa. Em vez disso, no entanto, os conselhos devem direcionar sua lealdade para o propósito da organização ou para sua razão de ser, dedicando-se à razão da existência da organização e, por extensão, às pessoas e às comunidades impactadas por seu trabalho. O melhor para o propósito e a comunidade nem sempre é sinônimo do melhor para a organização.

Pensemos em uma organização trabalhando com uma iniciativa de saúde pública para ajudar a educar sua comunidade a respeito da vacinação. Se os grupos focais mostrarem que o nome e a logomarca da organização confundem o público ou prejudicam as principais mensagens da campanha, seus funcionários ficarão, naturalmente, frustrados. Mudar os anúncios acarretaria um custo adicional e removeria elementos positivos da marca organizacional. Se os funcionários levarem essa questão para os membros do conselho, um conselho com propósito se certificaria de que aquela não seria uma conversa apenas sobre o orçamento, mas também sobre o que permitiria que a organização progredisse da melhor maneira em seu principal objetivo. Ademais, não deixaria que os benefícios organizacionais do reconhecimento da marca interferissem na realização do que é melhor para o propósito estabelecido.

  • Um conselho tradicional pergunta:  o que é melhor para nossa organização?
  • Um conselho com propósito pergunta: o que é melhor para o resultado que desejamos alcançar?

 

Respeito pelo ecossistema

Seja no ambiente de políticas públicas, dos relacionamentos entre as organizações e seus programas, no ambiente de financiamento, ou na simples coexistência em uma mesma área geográfica, o contexto no qual as organizações atuam importa. Todavia, conhecer essas dinâmicas não é, em geral, prioridade para os conselhos. Quando membros do conselho são escolhidos devido a seus conhecimentos técnicos na supervisão legal e financeira, bem como graças à sua habilidade na captação de recursos, eles podem se concentrar nas definições mais restritas a respeito da gestão do conselho e da supervisão fiduciária, tendo uma perspectiva limitada do trabalho da organização (e do contexto no qual ela atua). Isso é um problema.

Muitos conselhos trabalham para lidar com essa falta de consciência do ecossistema por meio da instrução dos conselheiros, colocando-os em contato com diferentes programas; porém percepções indiretas não são suficientes. Um conselho precisa de perspectiva. Ter conhecimento dos ecossistemas nos quais a organização atua é essencial, mas não é suficiente para saber quem são os demais players. As organizações devem reconhecer que cada uma das nossas organizações faz parte de um trabalho coletivo informal (ou formal) para lidar com desafios sociais e seus impactos; escolhas e ações organizacionais individuais afetam a força global do ecossistema, bem como seu sucesso. Assim como na natureza, quando uma organização prejudica o ecossistema, seu impacto pode ser sentido de maneiras bastante palpáveis. Os conselhos e suas organizações devem compreender como suas ações podem lesar o ecossistema e levar em conta o impacto nele provocado como parte do seu processo de tomada de decisão. Se uma decisão é boa para a organização, mas ruim para o ecossistema, o conselho com propósito faz uma pausa e pensa em uma alternativa diferente.

Um exemplo pode ser uma organização que esteja buscando um novo local para seus programas. Ao cogitar possíveis alternativas, encontra uma área que atende a todos os seus critérios. Contudo, é uma região também muito próxima de outra organização. Sendo a sua organização a maior e a dotada de mais recursos, optar por esse local pode fazer com que seja difícil para a outra organização seguir com os elementos e financiadores de seus programas. Um conselho com propósito buscaria entender o prejuízo que isso poderia causar para a outra organização e perguntar se esse local produziria o melhor resultado para o ecossistema como um todo.

  • Um conselho tradicional pergunta: qual seria o impacto para nossa organização?
  • Um conselho com propósito pergunta: qual seria o impacto para todos os players e para as dinâmicas dentro do nosso ecossistema? Isso nos ajudaria — como ecossistema — a fazer o melhor?

 

Mentalidade equitativa

O papel do conselho no progresso da equidade não é unidimensional e envolve a adoção de uma mentalidade equitativa em todos os seus trabalhos e no processo de tomada de decisão. Uma mentalidade equitativa não tem a ver apenas com a distribuição cuidadosa de recursos dentro da organização, com uma supervisão programática que analise resultados díspares com base em raça e em outras questões demográficas, com uma composição diversificada e inclusiva do conselho e com a distribuição do poder com os funcionários das equipes — mas certamente é tudo isso junto.

Os conselhos desempenham um papel fundamental para ajudar as organizações a compreender o contexto no qual atuam e a melhor priorizar recursos e estratégias com base nessa realidade. Nosso sistema americano é repleto de iniquidades oriundas de escolhas intencionais e sistêmicas elaboradas para favorecer alguns e prejudicar outros. A consciência acerca de como as iniquidades sistêmicas afetaram nossa sociedade — e aquelas que os programas organizacionais buscam atender — cria oportunidades poderosas para aprofundar o impacto, a relevância e o progresso da organização para uma sociedade melhor. Por outro lado, a falta de compreensão pode levar a estratégias fracassadas e ter um efeito prejudicial nos participantes programáticos e na comunidade como um todo.

Uma mentalidade equitativa fundamenta-se na consciência de iniquidades sistêmicas e faz com que a organização se comprometa a progredir de maneira igualitária em tudo o que faz. Isso inclui questionar atitudes da organização que não deram certo no passado, bem como usar o progresso dos resultados equitativos como suporte para todas as tomadas de decisão organizacionais.

Tomemos o exemplo de uma organização com um programa de desenvolvimento profissional amplo e bem financiado. Graças a avaliações programáticas individualizadas, a organização descobre que seus programas são altamente eficientes para participantes brancos, mas amplamente ineficientes para negros. Quando esses dados são compartilhados, um conselho com propósito levantará questões profundas e reflexivas acerca do futuro do programa. Os membros do conselho assumirão a responsabilidade, diante de seus funcionários, de ouvir com atenção os participantes negros do programa e criar uma estratégia para mudar a situação. Esses esforços podem provocar a reformulação do programa ou uma parceria programática com outra organização (com os recursos para fundamentar e apoiar a parceria). O conselho pode até cogitar uma transferência programática para outra organização mais bem equipada para administrar o programa a serviço da comunidade. Apesar dos incentivos financeiros para manter o status quo, uma mentalidade equitativa significa priorizar aquelas estratégias e táticas que promoverão a equidade, ainda que isso acarrete riscos ou perdas organizacionais.

  • Um conselho tradicional pergunta: como nossa estratégia vai fazer nossa missão progredir?
  • Um conselho com propósito pergunta: de que maneira esta decisão ou estratégia vai criar resultados mais equitativos? Existem formas de fazer com que isso ressalte as iniquidades sistêmicas e, caso existam, o que estamos dispostos a fazer para evitar que isso ocorra?

 

Voz e poder legitimados

Os líderes individuais que compõem os conselhos de organizações sem fins lucrativos refletem os valores e as crenças da organização acerca de quem deve ser capacitado e em quem devem recair as tomadas de decisões mais importantes. Quando conselhos se encontram compostos de uma maneira que os desconecta das comunidades servidas por suas organizações, isso indica que a organização não está agindo em parceria com a comunidade que busca atender. Uma coisa talvez ainda mais problemática: indica que as organizações veem isso como uma forma de atuação perfeitamente aceitável.

Na BoardSource, acreditamos que os membros do conselho têm a responsabilidade de se envolver com o poder, compartilhando-o com aqueles afetados por seu trabalho, inclusive junto ao conselho. Não é suficiente ter boas intenções ou ser bem informado; os conselhos têm a responsabilidade de se relacionar diretamente com aquelas pessoas que buscam atender de uma maneira que garanta que as decisões organizacionais sejam tomadas dentro de um contexto de verdadeira compreensão dos recursos, das necessidades e das aspirações da comunidade. Isso requer ouvir atentamente as necessidades e experiências dos participantes dos programas, mas vai muito além disso. Como pontuou recentemente Jim Taylor, da BoardSource: “Não se trata apenas de percepção e perspectiva — tem a ver com poder. Os conselhos precisam fazer mais do que convidar aqueles com experiência de vida relevante, devem compartilhar o poder assegurando que essas experiências sejam incorporadas à composição do próprio conselho, com todos os direitos, as responsabilidades e o poder que a filiação a um conselho traz consigo”. Graças a nosso mais recente estudo Leading with Intent, sabemos que isso está longe da realidade dos conselhos atuais.

Em uma atividade realizada pela BoardSource com CEOs e diretores executivos de organizações sem fins lucrativos, pedimos que eles avaliassem um cenário hipotético — porém bastante realista — em que uma organização de desenvolvimento comunitário enfrenta dificuldades para melhor atender seu público diante de uma gentrificação rápida e impiedosa que está forçando a mudança de membros de comunidades de minorias étnicas. Convidamos os participantes a discutir as questões que surgiriam neste cenário em reunião de conselho e demos um perfil do conselho e de cada um de seus membros. Contudo, de modo intencional, nós ocultamos dos participantes uma informação fundamental: havíamos dado a eles dois perfis de conselhos radicalmente diferentes. Alguns grupos receberam um perfil que incluía vozes diversificadas da comunidade; os outros, um conselho dominado por pessoas de fora, incluindo algumas interessadas no desenvolvimento do programa que estava provocando a gentrificação.

Depois de trabalharem juntos em grupos pequenos, pedimos que ponderassem sobre a capacidade de seus conselhos — com base em sua composição — de tomar decisões organizacionais, bem como apresentá-las para o público e stakeholders  mais importantes, incluindo jornais locais. A sala ficou mais agitada à medida que alguns grupos começaram a mostrar seu desconforto com o perfil de seu conselho (“Temos uma porção de construtores e banqueiros em nosso conselho que estão se beneficiando do desenvolvimento dessa área. E não temos ninguém da própria região. Isso não vai dar certo”). Depois, ouvimos o seguinte dos participantes que estavam do outro lado da sala: “Espere um pouco, o que você está dizendo? Temos muita gente da região no conselho”. Naquele momento, todos perceberam que — dentro de seus pequenos grupos — tinham recebido dois perfis de conselhos radicalmente diferentes. Conversamos, então, sobre como as diferenças na composição do conselho importavam e por quê. Um participante observou que o conselho que contava primordialmente com construtores e banqueiros seria visto por muitos como o “melhor” conselho com base principalmente em metas e potencial para captação de recursos, ainda que estivesse mal informado para tomar decisões nas quais a comunidade pudesse confiar. Por toda a sala, as pessoas assentiram com um gesto de cabeça. Depois, conversamos a respeito do preço que pagamos como organizações — e sociedade — quando conselhos são compostos daquela maneira.

Voz e poder da comunidade nos conselhos de administração são fundamentais. É o mecanismo para conquistar e manter a confiança exigida para a realização do trabalho das organizações do Terceiro Setor.

  • Um conselho tradicional pergunta: o que nós* acreditamos que é melhor? (*sem ponderar intencionalmente sobre como a definição de “nós” orienta nossa perspectiva).
  • Um conselho com propósito pergunta: nosso conselho é composto de forma a garantir que nosso poder seja autorizado também pela comunidade impactada pelo trabalho que realizamos? Estamos fazendo tudo o que podemos para ouvir o que os stakeholders do programa dizem ser importante?

 

Liderança de um conselho com propósito próximo: The Museum of Us

OMuseum of Us, localizado em San Diego, é um exemplo de entidade dotada de uma liderança de conselho com propósito atuante. Depois de um legado de mais de 40 anos como o San Diego Museum of Man — e dez anos de trabalho cuidadoso para decolonizar suas práticas —, a instituição tomou a significativa decisão de mudar de nome. Todos os quatro princípios da liderança de conselho com propósito fazem parte dessa transformação organizacional.

  • O propósito primeiro: está claro que o Museum of Us leva a sério seu papel como organização que existe para abrir a cabeça e promover ideias acerca da experiência humana. A instituição mostrou-se disposta a tomar decisões significativas que priorizassem o propósito, mesmo que isso acarretasse sacrifícios organizacionais.
  • Mentalidade equitativa: o esforço de decolonização do museu começou com a aceitação de que muitos de seus recursos culturais administrados tinham sido obtidos de formas profundamente problemáticas. Por conseguinte, era preciso trabalhar para devolver sistematicamente as peças que tinham sido, de uma maneira ou de outra, roubadas de seus legítimos donos. Isso levou a um conjunto de iniciativas de decolonização bem mais amplo e que atualmente vai muito além de recursos culturais e inclui as exposições do museu, bem como programas educacionais, marketing, administração, recursos humanos e até ações de captação de recursos. A questão principal para a organização passou a ser: uma determinada atitude contribui — direta ou indiretamente — para o projeto colonizador e a opressão sistêmica?. Caso contribua, como a organização pode trabalhar da melhor forma com as comunidades que procura servir para mudar isso em conjunto?
  • Voz e poder da comunidade: tanto na decisão de mudar de nome quanto nas iniciativas de decolonização em andamento, o Museum of Us tem procurado, deliberadamente, não só ouvir, como também compartilhar o poder. Os membros da instituição têm ouvido com atenção o que a comunidade diz durante o processo de alteração do nome, além de terem colocado comunidades indígenas na liderança da discussão sobre como lidar da melhor forma possível com seus pertences que vinham sendo administrados pelo museu sem seu consentimento.
  • Conscientização acerca do ecossistema: o museu é um player preocupado com o ecossistema. Um exemplo disso é o fato de ter trabalhado no reconhecimento de seu território, indicando que o museu está localizado em uma terra ancestral, não concedida, dos povos Kumeyaay, que vivem ali desde tempos imemoriais. Esse processo acerca da questão da terra perpassa todo o museu, podendo ser visto em suas exposições, em seu site, na assinatura usada pelos funcionários da instituição em seus e-mails, no começo dos tours, durante programas públicos, em entrevistas para a imprensa, em eventos de captação de recursos e antes de inúmeras consultas ou reuniões com os membros do conselho. Essas declarações são um primeiro passo rumo à construção de um futuro mais inclusivo que acabe com a supressão das vozes, vidas e da história dos povos indígenas em andamento pelo mundo.

 

O olhar para o futuro nos conselhos com propósito

A liderança de um conselho com propósito pode transformar a composição dos conselhos, atraindo, com o passar do tempo, líderes motivados e inspirados por princípios voltados para o propósito, eliminando, pouco a pouco, aqueles com ideias diferentes. A liderança de um conselho com propósito deixa evidente o que é diferente acerca da administração do Terceiro Setor (em oposição à administração corporativa) e de que maneira formas mais tradicionais de se pensar sobre a administração de organizações sem fins lucrativos deixam de reconhecer a singular incumbência dessas organizações e dos conselhos que as lideram. Colocar em prática princípios de liderança de conselho com propósito significa adotar a busca pelo propósito do bem público quanto ao ecossistema, além de se afastar do protecionismo e da autopromoção em nível organizacional.

Para alguns dos membros dos conselhos, isso será uma mudança empolgante e inspiradora rumo a um maior impacto social; para outros, criará a sensação de perda de identidade e status pessoais integrados ao posicionamento organizacional no cenário competitivo.

Porém a liderança de um conselho com propósito é mais uma mudança de pensamento e orientação quanto ao papel do conselho e menos uma estrutura ou um conjunto de práticas técnicas do que uma forma de ser e de pensar. É radical em sua simplicidade — uma mudança ampla rumo a uma liderança de conselho com propósito não lidaria apenas com os desafios bastante palpáveis enfrentados pelos conselhos na forma como são constituídos atualmente, mas provocaria um aumento de conselhos e organizações que estivessem profundamente ligados e interligados em suas atividades para impactar positivamente uma comunidade, bem como transformá-la.

Assumir a liderança de um conselho com propósito pode começar sem uma ação inicial coletiva de seus membros e não requer mudanças radicais imediatas em sua composição ou liderança — requisitos que podem impedir qualquer ação em nível do conselho. Na verdade, conselhos podem aproveitar a flexibilidade de sua estrutura atual de contêiner e passar a preenchê-lo de outra forma, com base em uma nova compreensão de seu papel e do que isso requer em termos pessoais, de perspectiva e de mentalidade para cumprir tal função.

Por ser uma abordagem evolucionária, adotar a proposta de liderança de um conselho com propósito é algo que certamente está a nosso alcance e que não exige a destruição da estrutura dos conselhos existentes e a criação de algo do zero. Uma mudança em direção a uma liderança de conselho com propósito é transformadora, mas os passos iniciais são suficientemente regulares a ponto de permitir que qualquer conselho a coloque em prática, inclusive o seu.

A BoardSource agradece a inúmeros parceiros e colegas cujas ideias, opiniões, bem como ações passadas, ajudaram a moldar nosso pensamento, possibilitando a elaboração deste artigo. Embora não se limite à lista a seguir, isso inclui o trabalho de Jane Wei-Skillern sobre Network Leadership e Networked Organizations, Race Forward’s Racial Equity Impact Assessment Guide, os autores Heather McLeod Grant e Leslie Crutchfield, de Forces for Good, princípios de Impacto Coletivo como apresentados pela FSG Impact, o trabalho do grupo TCC sobre Ecosystem Thinking e Relational Capacity, o Projeto de Modelo e Administração de Adoção da Community-Engagement GovernanceTM, o trabalho de David Renze sobre Reframing Governance, a iniciativa Fund for Shared Insight’s Listen4Good, e muitos outros.

 

A AUTORA

Anne Wallestad (@AnneWallestad) é presidente e CEO da BoardSource, organização sem fins lucrativos reconhecida internacionalmente e voltada para fortalecer a liderança de tais instituições em seu mais elevado nível: o conselho de administração.

Fonte: https://ssir.com.br/organizacoes-nao-governamentais-e-sem-fins-lucrativos/quatro-principios-da-lideranca-de-um-conselho-de-administracao-com-proposito

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